USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL: O DIREITO À AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE SEM A NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO

USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL: O DIREITO À AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE SEM A NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO

Inspirado nos precedentes legislativos bem sucedidos ocorridos com os procedimentos extrajudiciais de divórcio e inventário, a usucapião extrajudicial veio com o intuito de facilitar o reconhecimento do direito e agilizar a atividade jurisdicional, atribuindo às serventias notariais e registrais o papel antes delegado exclusivamente ao Poder Judiciário, nos casos em que haja consenso entre os interessados.

Em termos gerais e breves, a usucapião é o direito de aquisição pelo exercício da posse de forma contínua, pacífica e com ânimo de proprietário, e pode ser aplicada tanto em bens móveis, imóveis ou semoventes, e até mesmo sobre alguns direitos.

A contagem do prazo para aquisição da propriedade varia de acordo com cada caso, pelo preenchimento dos requisitos básicos de cada espécie e pelo decurso ininterrupto do tempo, conforme tabela demonstrativa abaixo:

 

ESPÉCIE PRAZO REQUISITOS
Ordinária 10 anos (i) Justo título; (ii) Boa-fé.
Ordinária (moradia) 05 anos (i) Justo título; (ii) Boa-fé; (ii) Possuidores nele estiverem estabelecido a sua moradia; ou (iii) realizado investimentos de interesse social e econômico.
Extraordinária 15 anos Dispensa-se o justo título e a boa-fé.
Extraordinária (habitacional) 10 anos (i) Dispensa-se o justo título e a boa-fé; (ii) Moradia habitual; ou (iii) Obras ou serviços de caráter produtivo.
Especial Urbana 05 anos (i) Não ser proprietário de outro imóvel, urbano ou rural; (ii) Não ter sido anteriormente. beneficiado; (iii) Imóvel não ultrapasse 250m². (iv) Admite-se apenas a sucessão na posse.
Especial Rural 05 anos (i) Imóvel até 50 hectares; (ii) Possuidor ou a sua família tornar a propriedade produtiva; (iii) Não ser proprietário de outro imóvel, urbano ou rural.
Indígena 10 anos (i) Integrado ou não; (ii) Trecho inferior a 50 hectares; (iii) Não se aplica às terras de domínio da União, ocupadas por grupos tribais.

 

Para contagem do tempo, o Código Civil brasileiro admite também a soma das posses, conforme seu art. 1.243, que determina que “o possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores, contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé”.

A título de exemplo, podemos mencionar o pai que toma posse de terreno vizinho particular e abandonado, e ali constrói uma instituição religiosa.

Passados 7 anos ininterruptos na posse e explorando a atividade no imóvel, o pai falece, e seu filho passa administrar a instituição.

Nesse caso, o filho poderá somar à sua posse o tempo que seu pai permaneceu explorando o imóvel e, com isso, após 3 anos terá direito a usucapir o bem através da espécie extraordinária habitacional, pela soma dos prazos correspondente a 10 anos, e com a manutenção dos direitos e obrigações do de cujus.

Ademais, pode requerer a usucapião qualquer pessoa, física ou jurídica, que já tenha consumado o tempo necessário e preenchido os requisitos básicos da espécie pretendida, mesmo se o usucapiente não estiver na posse do bem.

Isto é, mesmo sem estar na posse momentânea do imóvel, é possível requerer a usucapião quando comprovado o decurso do tempo necessário e as formalidades legais exigidas.

Da mesma forma, é legítimo também o requerimento feito pelo espólio e por pessoa menor, desde que legalmente representados, assim também como por copossuidores, conjuntamente.

O reconhecimento do direito à usucapião e seus fundamentos legais não são nenhuma novidade para o mundo jurídico, e as regras aplicáveis não foram alteradas pela inovação legislativa. O que se verifica pela usucapião extrajudicial é a possibilidade de optar pela via administrativa, mais célere e consensual, nos casos de usucapião de bens imóveis.

A consensualidade, por sua vez, é requisito indispensável para que o procedimento possa ser realizado administrativamente. Isto é, não pode haver qualquer controvérsia ou litígio com relação ao bem usucapiendo, aos confrontantes, aos confinantes, às fazendas públicas e os demais interessados. Caso contrário, será necessária a apreciação do caso pelo Poder Judiciário.

A possibilidade de usucapião extrajudicial surgiu no ordenamento jurídico com o Programa Minha Casa Minha Vida (Lei 11.977/2009), que possibilitou em ocasiões específicas a regularização fundiária de interesse social através da usucapião especial urbana.

Com o advento do Novo Código de Processo Civil (Lei n.º 13.105/2015), o instituto ampliou seu alcance, e atualmente já é possível o requerimento, por procedimento extrajudicial realizado por cartório de registro de imóveis, das diversas formas previstas em lei à usucapião.

Em seu art. 1.071, o novo diploma processual acrescentou à Lei de Registros Públicos (Lei n.º 6.015/1973) o art. 216-A, que dispõe sobre todo o procedimento administrativo, documentação exigida e demais requisitos legais.

No âmbito do estado do Rio de Janeiro, a regulamentação e aplicabilidade do procedimento pelas serventias estão previstas no Provimento da Corregedoria Geral de Justiça n.º 23/2016, sendo que, atualmente, há no Conselho Nacional de Justiça proposta de provimento em discussão sobre o tema, com o objetivo de regular a matéria no contexto nacional.

O procedimento extrajudicial inicia-se com requerimento dirigido ao cartório de registro de imóveis da circunscrição em que estiver situado o imóvel, firmado por advogado devidamente constituído, com indicação da espécie e instruída de alguns documentos básicos.

O primeiro deles é a ata notarial, que é o instrumento público pelo qual o tabelião de notas constatará o tempo de posse, os confinantes do imóvel, bem como todos os fatos relevantes ao reconhecimento do direito do requerente.

Além disso, é necessária a elaboração de planta e memorial descritivo do imóvel por profissional legalmente habilitado, com prévia anotação de responsabilidade técnica no conselho de fiscalização (CREA ou CAU), com assinatura dos titulares de direitos reais e outros direitos do imóvel, e também pelos confinantes, todas com a firma devidamente reconhecida.

Veja-se que as assinaturas dos confinantes colhidas no próprio memorial descritivo serve como anuência ao procedimento, conferindo consensualidade, pressuposto indispensável à usucapião extrajudicial.

Caso não sejam colhidas as assinaturas no momento da realização do memorial, os confinantes serão notificados a manifestar sua expressa concordância, valendo o silêncio como discordância.

Ao contrário do que acontece nos processos judiciais, para o procedimento da usucapião extrajudicial não se admite anuência tácita ou presumida. Os interessados deverão expressamente manifestar sua concordância ao procedimento.

Por fim, exige-se também a apresentação de certidões dos distribuidores em nome do requerente e do requerido, e também em relação ao imóvel, de modo a comprovar a ausência de demanda judicial ou gravame sobre o bem e sobre os interessados.

Apresentada toda a documentação, os interessados (proprietários do imóvel usucapiendo e dos confinantes, titulares de direitos reais e outros direitos, fazendas públicas) serão notificados pessoalmente para se manifestarem no prazo de 15 dias.

Em caso de concordância de todos os notificados e preenchimentos dos demais requisitos, o cartório realizará o registro da aquisição na matrícula do imóvel ou, se for o caso, abrirá nova matrícula a partir da descrição constante no memorial descritivo.

Porém, caso algum dos notificados mantenha-se inerte ou a documentação exigida não estiver em ordem, o pedido será rejeitado pela serventia.

Se algum dos interessados impugnar o pedido, o oficial do registro de imóveis remeterá a documentação ao juízo competente, tornando ineficaz o procedimento extrajudicial pela ausência de consensualidade e abertura de litígio, passando ao Poder Judiciário a responsabilidade de solucionar o conflito.

Por se tratar de um tema novo, ainda há muitas questões a serem aprimoradas pela legislação e pela prática cartorial, de modo a tornar o instituto cada vez mais aplicável e acessível.

Devido ao seu caráter consensual, na prática é de se vislumbrar que o procedimento extrajudicial possa ter grande eficácia nos casos de regularização fundiária e nas situações onde haja negócio jurídico anterior entre o requerente e o requerido, como por exemplo nas promessas de compra e venda não registradas e outras transações realizadas sem as formalidades legais exigidas.

O que se espera é que, com as experiências vivenciadas diante dos casos concretos levados às serventias, o procedimento possa se aprimorar e se tornar importante instrumento de reconhecimento do direito à aquisição de propriedade sem a necessidade de intervenção do Estado-Juiz.

Pedro Otávio Assad de Mattos Simões